Recomemdamos vivamente a todos aqueles que estejam interessados em conhecer pormenorizadamente o que se passou em Angola depois da independência ler esta excelente obra. Infelizmente nem todos terão facilmente acesso a este livro, e como tem copyright, solicito a indulgência do autor e da editora por esta transcrição cujo tema não encontrei tão claro em parte alguma. Obrigado
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O bastião da resistência de Jonas Savimbi
Jonas Savimbi (foto Net)
Pag.106/110. A Jamba ficara para trás. Os dois dias com a CCPM acabariam por ser os últimos da fase terminal do seu esplendor, o início de um futuro sem vida. Das vezes que lá voltei, encontrei-a murcha, a caminho da solidão, meio devorada pela salalé. Com a Namíbia independente, a nova África do Sul de Nelson Mandela, liberta do Apartheid, virando-lhe as costas, e a torneira dos financiamentos norte-americana meio fechada, Jonas Savimbi esqueceu-a. A História não se fez rogada e condenou-a ao definhamento, sem glória.
Situada no extremo Sudeste de Angola, para lá de Mavinga, nas chamadas «Terras do fim do Mundo», encravada entre a Zâmbia e a Faixa de Caprivi, a Jamba que eu vi, que a UNITA me mostrou, em visitas sempre acompanhadas, era um conjunto de pequenas sanzalas circulares, cada uma com seis ou sete palhotas e um Jango central (casa de reuniões), distantes alguns quilómetros entre si, interligando-se por um conjunto de picadas limpas e cuidadas. Num dos cruzamentos da mini-rede rodoviária, estava colocado um polícia-sinaleiro. — o célebre sinaleiro da Jamba, tão filmado e fotografado. A este ponto, iam dar a estrada do aeródromo e duas outras: uma da Namíbia, a 80 quilómetros de distância; outra da Zâmbia, a 60. Pela da Namíbia, ocupada pelas tropas sul-africanas até 21 de Março de 1990, chegavam os alimentos, bebidas, tecidos, medicamentos, armas, combustíveis e todo o material de apoio logístico, em colunas organizadas pelo regime do Apartheid, desde sempre apelante incondicional de Jonas Savimbi. Era, também, uma das vias por onde o Exército de Pretória entrava em Angola, sempre que a UNITA pedia o seu auxílio.
As palhotas, só na aparência o eram. Assentes em ossaturas de cimento, barro e chapas de zinco — algumas com instalação eléctrica e água canalizada —, as casas eram exteriormente forradas com madeiras e colmo das matas locais, assemelhando-as a vulgares cubatas de uma qualquer sanzala, e camuflando-as por completo. Não ultrapassando, em altura, a copa das árvores mais baixas, eram absolutamente indetectáveis de cima. A energia eléctrica chegava-lhes de geradores, e a água de moto-bombas que a sugavam de lençóis freáticos, alcançados por furos de captação. As pessoas circulavam, sempre ocultas pela vegetação, evitando zonas de céu aberto. A Jamba era um pequeno mundo oculto. A ela cheguei, sempre pelo ar, sem que daqui a conseguisse ver. Só após uma viagem, de mais ou menos 45 minutos, de jipe, a partir da pista do aeródromo, que recebia aviões de grande porte, muitas vezes transportando abastecimentos e armas, se divisavam as primeiras palhotas da proclamada capital das «Terras Libertadas de Angola».
A UNITA levou-me a visitas, sempre que lá estive. Vi oficinas de fardamento, com dezenas de mulheres costurando em máquinas eléctricas, um hospital e algumas enfermarias, uma capela de culto católico, uma escola, uma estação de rádio — a Vorgan — e um estúdio de televisão. Tudo funcionando disciplinadamente, com eficácia visível, sob atenta vigilância de guerrilheiros bem fardados e armados, e, todos eles, com óculos escuros do mesmo modelo. Entrar ou sair da Jamba, sem conhecimento de quem nela mandava, era impossível. Os contactos com o povo a trabalhar nas lavras, ou as visitas a casas de famílias, por mim insistentemente pedidos, ficaram sempre para mais tarde, nunca os tendo conseguido. Com intervalo para um almoço ligeiro, as visitas, programadas pela UNITA, terminavam invariavelmente ao fim da tarde, não havendo, depois disso, tempo para mais nada. Era então o regresso aos jangos para conversas e um chá, antes do jantar. Depois, o café e um digestivo, oferecidos com gentileza — na primeira estada, nas outras já a Jamba estava a esboroar-se, e o chá e simpatia foram-se. Caída a noite, o jornalista não circulava, mesmo que o quisesse. Aquela era uma grande sanzala na mata, sem iluminação pública, caminhos alcatroados, espaços de lazer, cafés ou bares. Para além disso, com muitos mosquitos e animais selvagens, não convindo, portanto, sair — diziam os cicerones. Mais não restava do que o recolhimento à cama.
Da Jamba tinham outros uma imagem diferente, sem nunca lá terem estado, construída a partir das inteligentes operações de propaganda e relações públicas, montadas pela UNITA em todo o mundo, com destaque para Portugal, onde a sua «tribo de brancos» (Carlos Fontoura, Rui Oliveira, Fátima Roque e Joffre Justino, entre outros) desenvolvia intensa actividade lóbista. Um subdirector de Informação da RTP, Artur Albarran, pediu-me, aquando da visita da CCPM, e na primeira noite em que lá dormi, de 29 para 30 de Junho de 1991, uma crónica sobre a «festa», dizia ele, que estava a acontecer nas ruas da cidade da Jamba. Expliquei-lhe, pacientemente, que não havia festejos nem me encontrava numa cidade, descrevendo-lhe com pormenor o local, e tentando demovê-lo. Sem êxito. O homem queria a minha crónica, ou então, redigiriam uma notícia em Lisboa. Crónica de festejos, não teve, mas sim uma intervenção, dando conta da visita da CCPM. Quanto ao resto, não sei se os espectadores da RTP tiveram, ou não, uma notícia de «festa» na cidade da Jamba. Aqui, não vi, nessa noite, o Telejornal. O contacto com o subdirector, e o envio da minha crónica, foram feitos através de um sofisticado sistema de comunicação via satélite, da UNITA, cujos custos de exploração eram suportados pela Administração norte-americana. O guerrilheiro que estabelecera a ligação, especialista em transmissões militares, formado nos Estados Unidos, ouvira a conversa com atenção. Desligado o telefone, sorriu-me e encolheu os ombros! Com os centros de decisão da RTP, em Lisboa e no Porto, não resistindo a fortes e sedutoras investidas dos lóbis do Galo Negro, alguns no interior das próprias redacções, situações semelhantes viriam a repetir-se.
Nunca se soube, com rigor, quantas pessoas viviam na Jamba. Para além de unidades regulares de guerrilheiros, que chegaram a totalizar 25 mil homens, a UNITA falava em 25 a 30 mil residentes, na maior parte mulheres e crianças que constituíam, segundo o movimento, o apoio de retaguarda dos combatentes. A parte da população não utilizada no funcionamento e manutenção da estrutura de suporte — geradores, captações de água, actividades .administrativas, escolas, hospitais, limpeza, etc.—trabalhava a terra, sendo as colheitas entregues ao partido, para distribuição.
No quartel-general da UNITA não circulava qualquer moeda. Omitido e explicado como objecto pecaminoso, porque feito pelo MPLA, o dinheiro era desconhecido. A gestão do movimento, de inspiração maoísta, tudo garantia, desde vestuário e alimentação a receptores-rádio de Onda Curta, para que todos escutassem a Voz da Resistência do Galo Negro, a Voz da América e a BBC. A Vorgan transmitia, utilizando três frequências cedidas pela Voz da América: 9.700 kHz, das 06.00 às 12.00 horas; 11.830 kHz, entre as 12.00 e as 19.00 horas; 7.100 kHz, das 19.00 horas em diante.
Jonas Savimbi considerou a Jamba «uma conquista política sobre o imperialismo, como foi Londres, sob o comando de Wiston Churchill, sobre o nazismo, e que nunca fechará sobre a história de Angola». Nela exercia controlo total, apoiado numa guarda pretoriana e numa bem tecida teia de espionagem, a que ninguém escapava, a começar pelos elementos da sua própria direcção. Da Jamba, a que chamou, também, «o bastião da resistência que deve ser visto com orgulho por toda a África», Savimbi dirigiu, durante mais de 10 anos, a guerra contra o Governo angolano, coberto pelos Estados Unidos e pela África do Sul.
As legiões de ministros dos Negócios Estrangeiros, senadores e congressistas norte-americanos deputados de muitos parlamentos, políticos de oposição, ou desempregados, enviados de Governos, presidências e monarquias sem trono, senhoras de muitos lóbis, amigos, convidados e jornalistas, que divulgaram, promoveram e mitificaram a Jamba, mais do que a própria UNITA, têm o dever de a não deixarem escapar, pelo menos, do museu da memória do povo angolano. Tarefa impossível, talvez. Muita daquela gente ciranda hoje na esfera de altos negócios, em Luanda e noutras capitais, e a Jamba agoniza, lentamente, tragada pela mata.|